Gênero e a Influência na Saúde Sexual e Reprodutiva
- DefiniçãoGênero é a construção social desigual do papel do homem e da mulher a partir das diferenças biológicas, e que resulta em desigualdades de direitos, de oportunidades e em relações sociais de poder entre homens e mulheres na sociedade.
O conceito de gênero surgiu da luta dos movimentos feministas. As feministas americanas foram as primeiras a utilizar o termo gênero para destacar a diferenciação social de homens e mulheres com base no sexo e que determinava discriminação e opressão das mulheres. No final da década de 1980, o termo gênero também passou a ser usado pelas feministas do Brasil.
Falar de sexo feminino e masculino não é a mesma coisa que falar de gênero. Sexo refere-se às características biológicas de homens e mulheres, ou seja, às características específicas dos aparelhos reprodutores femininos e masculinos, ao seu funcionamento. E falar de gênero é fazer notar que desde o nascimento e a partir da diferença biológica existente entre homens e mulheres, a sociedade define um conjunto de características que definem o “dever ser” de cada homem e o “dever ser” de cada mulher, impostas de maneira oposta. Isto significa que o homem para ser homem, precisa negar e afastar-se de qualquer característica definida como “feminina”; e a mulher para ser mulher deve adotar as características tidas como “femininas”. Todas essas características são estereótipos construídos através de um processo histórico de socialização, educação e dominação.
“Gênero é uma condição social e cultural construída historicamente. É o conjunto de características, papéis, atitudes, valores e símbolos que constituem o “dever ser” de cada homem e de cada mulher, impostos dicotomicamente a cada sexo mediante o processo de socialização e que fazem aparecer os sexos como diametralmente opostos por natureza” (MONTRONE E DIAZ, 2013)
Não existem naturalmente os gêneros masculino e feminino, os papéis do homem e da mulher são constituídos culturalmente e mudam conforme a sociedade e o tempo. Os papéis de gênero começam a ser construídos, a ser ensinados pela sociedade machista desde que o/a bebê está na barriga da mãe, quando a família, de acordo à expectativa, começa a preparar o enxoval conforme o sexo. Dessa forma, cor de rosa para as meninas e azul para os meninos. Depois que nasce um bebê, a primeira coisa que se identifica é o sexo: “menina ou menino” e a partir desse momento começará a receber mensagens sobre o que a sociedade espera desta menina ou menino. Ou seja, por ter genitais femininos ou masculinos, eles são ensinados pelo pai, mãe, família, igrejas, escola, mídia, sociedade em geral, diferentes modos de pensar, de sentir, de atuar.
Embora a situação tenha mudado nos últimos tempos, ainda é muito forte a reprodução desses estereótipos. Por exemplo, as meninas são incentivadas a serem delicadas, passivas, sensíveis, frágeis, dependentes e todos os brinquedos, a educação e jogos infantis reforçam o seu papel de mãe, dona de casa, e consequentemente responsável por todas as tarefas relacionadas ao cuidado dos filhos e da casa. Ou seja, as meninas brincam de boneca, de casinha, de fazer comida, de limpar a casa, tudo isto dentro do lar. São chamadas de princesas, que ficam à espera do príncipe com quem se casarão, terão muitos/as filhos/as e serão felizes para sempre. O papel da mulher como reprodutora, continua sendo muito valorizado. Pelo contrário, os meninos são ensinados a serem fortes, eles não podem chorar, não podem ter medo, tem que ser bons de briga e gostar de mulheres. Eles brincam em espaços abertos, na rua, jogam bola, brincam de carrinho, de guerra, de super-heróis etc. Ou seja, desde pequenos, eles se dão conta que pertencem ao grupo que tem poder. Até nos jogos os meninos comandam. Não são obrigados a arrumarem a cama ou lavarem a louça, eles são incentivados a serem fortes, independentes, valentes. E mais, se eles gostam de fazer serviço doméstico, eles são ridicularizados e chamados de “mulherzinha”. Desde criança, meninos e meninas aprendem que o homem tem mais valor na sociedade e o homem tem mais poder.
A médica feminista chilena Maria Isabel Matamala mostrou como as desigualdades de gênero são produto de um processo pedagógico realizado socialmente e como essas desigualdades, que limitam os direitos das mulheres e dão mais poder aos homens, são construídas a partir de 4 eixos: sexualidade, reprodução, divisão sexual do trabalho e no âmbito público no exercício da cidadania.
A sexualidade na mulher sempre foi vinculada à reprodução para a sociedade, sexualidade significava sexo e a mulher devia ter sexo somente para se reproduzir. A sexualidade das mulheres era reprimida e controlada, não tinham direito ao prazer, desde pequenas elas eram ensinadas a serem mães, a cuidar dos outros e a dar prazer aos homens. Pelo contrário, os homens desde pequenos são estimulados a ter sexo, escutam mensagens como “Macho que é macho quer sexo a toda hora”, “Homem não chora”, ou "Homem não leva desaforo para casa”. Isto é o que tem se chamado de masculinidade tóxica, porque traz consequências como a violência contra as mulheres, mas também traz consequências para os homens, eles correm muitos riscos e sofrem violência para demonstrar que são homens.
A sociedade também determinava que a mulher, por ser ela quem engravidava, era a responsável pelo trabalho vinculado à reprodução. As mulheres eram obrigadas a ficar em casa, cuidar dos filhos e realizar o trabalho doméstico, desvalorizado pela sociedade e que as deixava “donas de casas” limitadas ao mundo do lar; com menos possibilidade de informação, educação e formação profissional. As mulheres até hoje têm dupla ou tripla jornada de trabalho, e, frente ao mesmo trabalho, elas ganham 30% menos que os homens.
Segundo Guacira Louro, a desigualdade entre homens e mulheres pode ser analisada considerando a esfera pública e a privada. Na privada, que é o âmbito da casa, onde para a mulher é delegado o trabalho doméstico, resulta numa dupla jornada de trabalho, e na esfera pública as mulheres têm salários inferiores aos dos homens e tem pequena participação política.
Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem-se seres humanos na sua integridade.
SIMONE DE BEAUVOIR (1967)
Essas desigualdades de gênero trazem sérias consequências na saúde e na vida das mulheres e dos homens que afetam toda a sociedade. Na saúde sexual e reprodutiva, as desigualdades de gênero aumentam a vulnerabilidade das mulheres, em especial das adolescentes para a gravidez não intencional, as IST/HIV-Aids, o casamento infantil, a violência contra a mulher, com um grande número de feminicídios. O homem não faz exames preventivos e também fica mais vulnerável ao câncer de próstata.
Os programas de saúde chamados de “Programas materno-infantis” valorizavam a mulher enquanto mãe e reprodutora e não enquanto mulher. O Brasil avançou muito com o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), implementado em 1984.
A situação com o tempo vem mudando e tem se avançado muito em especial nos aspectos legais, entretanto ainda há muito para ser feito e o trabalho educativo com crianças e adolescentes, desde uma perspectiva de igualdade entre gêneros, é fundamental para se conseguir a igualdade de direitos e oportunidades para mulheres e homens. Por esse motivo, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em que a agenda 2030 foi aprovada por representantes de 193 Estados-membros, esses países se comprometeram em implementar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) dessa agenda, sendo um deles, o ODS 5 - Igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas.
“Igualdade de gênero" significa equiparação de direitos, oportunidades, representação política e respeito entre homens e mulheres. Refere-se ao conceito de que todos os seres humanos, sem diferenciação de sexo ou gênero, são livres para desenvolver suas habilidades pessoais e fazer escolhas sem limitações impostas pelas funções rigidamente atribuídas a um gênero.
- Conceito de empoderamento Empoderamento é o processo pelo qual as mulheres ganham poder interior para expressar e defender seus direitos, ampliar sua autoconfiança, fortalecer sua própria identidade, melhorar sua autoestima e, sobretudo, tomar suas próprias decisões sobre seus corpos e suas vidas!
Empoderamento em saúde sexual e reprodutiva é um processo e um resultado transformador, pelo qual as mulheres ampliam sua capacidade de tomar decisões informadas sobre suas vidas reprodutivas, amplificam sua capacidade de participar significativamente de discussões públicas e privadas relacionadas à sexualidade, saúde reprodutiva e fertilidade, e atuam de acordo às suas preferências para alcançar os resultados reprodutivos desejados, livres de violência, coerção ou medo. No contexto do planejamento familiar, essa definição implica que as mulheres devem ser capazes de expressar seus desejos de ter ou não uma gravidez aos seus parceiros, aos provedores de saúde, entre outros; participar significativamente da comunicação e tomada de decisões com parceiros, provedores de saúde e em suas comunidades; e conseguir os resultados desejados sobre o casamento, as condições das relações sexuais e o uso da contracepção (EDMEADS; ET AL. 2018).
Reconhecer que existem essas desigualdades de gênero; que até os dias de hoje ser homem tem mais valor do que ser mulher na sociedade; que essas desigualdades continuam sendo reproduzidas pela família, igrejas, escolas, serviços de saúde e por toda a sociedade; que essas desigualdades têm graves consequências na saúde de mulheres, de homens, na vida das pessoas e no desenvolvimento social e econômico dos países; permitirá mudar essa situação.
É fundamental realizar ações para mudar essa cultura machista, para construir novas masculinidades, e uma das principais ferramentas é a Educação Integral em Sexualidade realizada na escola e fora da escola.
Na saúde também é fundamental incorporar o enfoque de gênero, em especial na saúde sexual e reprodutiva.
A seguir, temos algumas orientações descritas por Montrone e Díaz (2013) para a adoção de um enfoque de gênero em saúde, em especial na saúde sexual e reprodutiva.
Adotar um enfoque de gênero em saúde significa:
• Reconhecer que existem relações desiguais de poder entre homens e mulheres, classes sociais, étnico-raciais e geracionais, e que essa desigualdade está afetando a saúde das mulheres;
• Visualizar e analisar as consequências dessas desigualdades para a saúde das mulheres;
• Facilitar o “empoderamento” das mulheres;
• Facilitar um processo de reflexão de mulheres e homens sobre essas desigualdades e iniquidades, sobre as suas consequências na vida de ambos e ações de mudanças para essas relações de poder;
• Propor ações de saúde que considerem as especificidades e necessidades de diferentes grupos de mulheres, incluindo registro de atividades com os respectivos recortes;
• Garantir o acesso a serviços de saúde aos diferentes grupos de mulheres ao longo de sua vida;
• Facilitar a participação dos homens nas ações de saúde sexual e reprodutiva;
• Considerar os aspectos epidemiológicos, condicionantes biológicos e sociais, além de aspectos gerenciais e orçamentários;
• Explicitar os componentes da equidade em saúde, dado que a igualdade de resultados em saúde pode, em alguns casos, significar injustiça de gênero, assim como a igualdade de acesso à saúde pode não ser um indicador de equidade;
• Garantir o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Alcançar a Igualdade de gênero e facilitar o empoderamento de mulheres e meninas é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU - ODS #5. - Referências- CABRAL, F.; DIAZ, M. Relações de gênero. Cadernos afetividade e sexualidade na educação: um novo olhar. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Fundação Odebrecht. Belo Horizonte: Rona, 1999. p. 142-50.
- EDMEADES, J., HINSON, L., SEBANY, M., & MURITHI, L. A conceptual framework for reproductive empowerment: Empowering individuals and couples to improve their health. Washington, DC, USA: International Center for Research on Women .2018. Retrieved from https://www.icrw.org/publications/framework-for-reproductive-empowerment-brief/.
- HEALTH, EMPOWERMENT, RIGHTS & ACCOUNTABILITY. HERA. Action Sheets. International group HERA: Health, Empowerment, Rights & Accountability, Secretariat at International Women’s health Coalition, 2001. Disponível em: <http://www.iwhc.org/storage/iwhc/docUploads/HERAActionSheets.PDF?documentID=52> Acesso em: 4 ago. 2009.
- INTERNATIONAL CONFERENCE ON POPULATION AND DEVELOPEMENT (ICPD) Cairo, Egipto, 1994. Disponível em <http://www.un.org/popin/icpd2.htm> Acesso em: 20 julho. 2011.
- LOURO, G. L. (org) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
- LOURO, G. L.; FELIPE, J.; GOELLNER, S. V. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003
- MATAMALA, M.; OSORIO, P. M. Salud de la Mujer, calidad de la atención y género. Colectivo Mujer, Salud y Medicina Social. Santiago: Lom, 1996.
- MONTRONE, Ainda Victoria Garcia. DÍAZ, Margarita. Políticas de Saúde da Mulher, Gênero e Sexualidade, Direitos Sexuais e Reprodutivos. IN: FABBRO, Marcia.Regina.Cangiani.; MONTRONE, Aida.Victoria Garcia. (orgs).Enfermagem em Saúde da Mulher. Difusão: São Caetano do Sul, SP, SENAC: Rio de Janeiro, 2013, p.29-55.
- SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre: v. 20, n. 2, p 71-99, 1995.